
Acidente de um motociclista próximo à rótula do Campeche, em Florianópolis, em fevereiro de 2024 – Foto: CBMSC/Divulgação/NDVítimas de acidentes de trânsito em Florianópolis vivem entre o medo de voltar às ruas, longos processos de reabilitação e histórias que não tem segunda chance. Única do Brasil sem agentes de trânsito e sem radares de velocidade, a capital de Santa Catarina registrou aumento de 50% nas mortes entre 2023 e 2024.Reinaldo Castro, de 33 anos, dividia a rotina entre o trabalho de mestre de obras e entregas como motoboy para sustentar a esposa e três filhos. Durante uma entrega, na madrugada de 8 de setembro, dormiu no guidão, bateu contra a mureta do Túnel Antonieta de Barros e morreu no local.Morte no Túnel Antioneta de Barros aconteceu após trabalhador em dupla jornada dormir no volante – Vídeo: Divulgação/NDSegundo a PMRv (Polícia Militar Rodoviária Estadual), Reinaldo usava um capacete escamoteável, modelo com proteção móvel no queixo. O impacto contra a estrutura metálica não permitiu que a proteção fosse suficiente para salvá-lo. Após a morte, a esposa Caroline Freitas pediu ajuda para custear alimentação e o aluguel da família e escreveu nas redes sociais: “Nada é mais difícil do que aprender a viver sem ti, mas eu guardo comigo cada momento que vivemos.”
Mortes no trânsito crescem 50% em Florianópolis; maioria são motociclistas
Conforme levantamento da Rede de Vida no Trânsito, Florianópolis registrou 80 mortes no trânsito entre 2023 e 2024. A maioria das vítimas de trânsito — 80% — são homens, com idade média de 33 anos, e motociclistas.O estudo também revelou um padrão de risco já conhecido pelos especialistas: alta velocidade e travessias inseguras. O estudo analisou três trechos mais críticos entre 2013 e 2024: Avenida Beira-Mar Norte, Avenida Gustavo Richard e Elevado do CIC.Na Beira-Mar Norte, cerca de 44% das vítimas fatais eram pedestres e idosos. Muitos atravessavam fora da faixa em uma via onde a velocidade máxima é de 80 km/h. Na Avenida Gustavo Richard, com apenas 2 km de extensão, 31 pessoas morreram. Entre elas, 15 pedestres atropelados, e cinco motociclistas que bateram na mureta do elevado.Cerca de 78% dos nove acidentes fatais no Elevado do CIC ocorreram aos domingos ou fora do horário de pico, o que, para a pesquisa, indica excesso de velocidade e ocorrências envolvendo álcool e drogas.O relatório conclui que o risco é previsível e, portanto, evitável. As recomendações da Rede Vida no Trânsito sugerem redução de velocidade, instalação de radares de velocidade e sinalização mais claras para curvas e travessias perigosas, medidas ausentes em alguns trechos da cidade.Os números nacionais reforçam a gravidade do cenário. Segundo dados do SBOT (Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia), os acidentes com motos representaram 35% das mortes no trânsito brasileiro em 2022.Entre os feridos, 25% não usavam capacete no momento do acidente. Além disso, em 11 estados, já há mais motocicletas registradas do que condutores habilitados — um dado que expõe a urgência de ações efetivas de educação e fiscalização no país.Dados nacionais mostram cenário alarmante – Vídeo: SBOT/Divulgação/ND
Velocidade, imprudência e falta de fiscalização formam cenário de risco
Em 8 de outubro, o boxeador gaúcho Flávio Augusto Schuller Azambuja, de 26 anos, morreu após ser atropelado e arrastado por um ônibus de transporte público na SC-401. Após a moto parar por um problema mecânico na rua sem acostamento, o motociclista parou na terceira faixa em obras, sem sinalização.Enquanto aguardava o socorro do irmão, o ônibus atropelou a moto e arrastou a vítima, que ficou presa embaixo das ferragens do coletivo, que em seguida incendiou. O irmão, quando viu o ocorrido, correu em direção às chamas para tentar retirar Flávio de baixo do ônibus. Contudo, o fogo se espalhou rapidamente e a vítima morreu no local. O motociclista, identificado como Flávio Augusto Schuller Azambuja, de 26 anos, era gaúcho e morava no Norte da Ilha – Redes sociais Foto 1 de 4 Azambuja morreu atropelado pelo ônibus executivo da linha 1123 Jurerê, que em seguida pegou fogo – PMSC/ND Foto 2 de 4 Ônibus precisou ser levantado com guindaste para que a vítima fosse retirada de baixo – Guarda Municipal de Florianópolis Foto 3 de 4 Corpo de bombeiros foram até o local e apagaram as chamas. – Guarda Municipal de Florianópolis Foto 4 de 4 Embora os motociclistas concentrem as mortes no trânsito, os fatores que levam a tantos acidentes são múltiplas. Para José Leles de Souza, doutor em engenharia de transportes do Icetran, não há como apontar um único culpado, mas uma combinação de imprudência, velocidade, falhas de fiscalização e falta de infraestrutura segura.“A alta velocidade reduz o tempo de reação e aumenta a gravidade do impacto. Se a via é de 60 km/h e alguém trafega a 80 km/h, a chance de morte é muito maior”, explica. O engenheiro também destaca a falta de distância de segurança: “A proximidade de um veículo do outro não permite uma resposta em tempo hábil para evitar o impacto”.José Leles ressalta a imprudência como fator determinante: “Os motociclistas circulam entre os veículos, muitos não respeitam as regras de trânsito, fazem costuras; essa categoria está mais exposta, o corpo humano não foi preparado para impactos nesse nível”.José Leles de Souza, presidente do IcetranFoto: Reprodução/ND MaisPara enfrentar o problema, uma das medidas adotadas pelas autoridades é o controle de velocidade nas vias mais críticas, por meio da instalação de radares. Questionada sobre essa possibilidade, a Secretaria Municipal de Infraestrutura e Manutenção da Cidade afirmou que não há previsão de implantação de radares até o momento e que a fiscalização na região é feita pela polícia com o apoio da Guarda Municipal.
15 minutos de moto, uma hora de ônibus
Germano Rorato, fotógrafo, pilotou moto por 19 anos, até decidir vender o veículo após cinco acidentes, dois deles graves. “Vivi três situações de acidentes só no último ano. Se tivesse acontecido, teria sido gravíssimo. Eu não quero mais passar por isso, não quero sofrer mais nenhum acidente.”Mesmo após decidir vender a motocicleta, Germano ainda pensa em um meio de transporte que seja efetivo em meio ao trânsito intenso de Florianópolis. Morador do Sul da Ilha, o fotógrafo precisaria pegar três ônibus para chegar no trabalho. Diante da dificuldade, a tentação de se arriscar sob duas rodas é grande.“Florianópolis tem um trânsito que não funciona. Ele tranca, e isso faz mais pessoas quererem ter uma moto. É um meio de locomoção tão rápido e prático, mas ao mesmo tempo tão inseguro. É uma tentação.”
Acidentes lotam hospitais e paralisam cirurgias eletivas em Florianópolis
O ortopedista Diogo Rath Fingerl Barbosa, do Hospital Governador Celso Ramos, referência em traumas na capital, diz que se impressiona com o número de motociclistas jovens que chegam ao pronto-socorro para atendimento.“A maior parte dos acidentes envolve motociclistas, homens entre 18 e 35 anos são as principais vítimas. É uma faixa etária economicamente ativa, então o impacto é muito grande, não só para o hospital, mas para as famílias e para a sociedade como um todo.”As lesões mais comuns entre os motociclistas são fraturas de membros inferiores, pelve e coluna, assim como traumatismos cranianos. “O trauma de coluna é particularmente delicado, porque pode deixar sequelas neurológicas, inclusive tetraplegia. Também vemos muitos traumatismos cranianos, que são potencialmente fatais”, explica o médico.Barbosa também lembra que o impacto vai além das vítimas e suas famílias: “No último fim de semana chegaram três pacientes politraumatizados por acidentes de trânsito. Passamos a semana inteira operando esses casos graves. As três vagas que seriam usadas para cirurgias eletivas foram ocupadas por vítimas do trânsito.”Germano conhece o peso de ser uma vítima de acidente de trânsito. Ao todo, o fotógrafo já quebrou o fêmur, a clavícula e o braço em diferentes acidentes com a motocicleta. A cicatriz que atravessa a coxa esquerda serve como lembrete do grave acidente que sofreu em 2018. Após fraturar o fêmur, osso da coxa, o fotógrafo passou por uma cirurgia, ficou oito meses andando de muleta e um ano e meio em reabilitação.“Eu estava no auge da minha carreira quando sofri o acidente. Ganhei uma placa que atravessa a minha coxa e seis parafusos. Fiquei parado por mais de um ano”, lembra.Além do custo individual para o físico e psicológico das vítimas, acidentes sobrecarregam o sistema de saúde. “Todos os dias chegam pacientes com fraturas graves, politraumatizados, alguns em estado muito grave. Isso gera uma sobrecarga muito grande para o sistema de saúde, tanto em termos de atendimento imediato, quanto de reabilitação posterior”, pontua o ortopedista.Números do DataSUS mostram que acidentes no trânsito são um problema de saúde pública. Apenas os atendimentos para motociclistas acidentados custou aos cofres públicos R$ 14 milhões em 2023 e R$ 22 milhões em 2024. Assim como o crescimento no número de colisões, o valor pago pelo Estado sofreu um aumento de 57%.
Governo Federal avalia implantação de Faixa Azul exclusiva para motos em todo o país
O governo federal avalia criar uma regulamentação para implementar faixas azuis exclusivas para motocicletas em todo o território nacional, a partir de abril de 2026. A medida está em estudo pela Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito) e segue o modelo já aplicado em São Paulo, cidade pioneira no uso dessa sinalização.Criada para organizar o fluxo de motos entre os veículos, a faixa azul rapidamente apresentou resultados expressivos. Segundo a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), as mortes de motociclistas caíram 47,2% nas vias onde o projeto foi implantado, de 36 em 2023 para 19 em 2024. Desde então, a cidade passou a expandir a iniciativa e hoje, há cerca de dois anos e meio de projeto, São Paulo conta com 232 km de faixa azul distribuídos em 46 vias.Júlio Rebelo, engenheiro e gestor da área de segurança de tráfego da CET, aponta que a principal vantagem é a diminuição da gravidade do sinistro, que causam um grande custo para o SUS e lotam as emergências dos hospitais: “Diminuímos a gravidade dos sinistros e das lesões, evitando amputações e reduzindo internações de alta complexidade.”Júlio Rebelo, engenheiro e gestor da área de segurança de tráfego da CETFoto: Arquivo Pessoal/ND MaisA experiência paulista inspirou outras cidades. Santo André e São Bernardo do Campo registraram queda de acidentes após a adoção da Faixa Azul, enquanto Salvador e Recife iniciaram os projetos-piloto. Ao todo, cinco municípios já receberam autorização da Senatran para testes. A medida ainda não está regulamentada no Código de Trânsito Brasileiro, mas o governo federal prevê normas nacionais até 2026, após avaliação dos resultados.O desempenho do modelo tem ampliado o interesse de prefeituras em diferentes regiões do país. Belo Horizonte e o Distrito Federal estudam a implantação do projeto e aguardam definição federal para padronização da sinalização e critérios técnicos.
Florianópolis tenta aderir à Faixa Azul, mas enfrenta impasse político
A implementação da faixa azul em Florianópolis chegou a ser defendida pelo prefeito Topázio Neto, que enviou o projeto à Senatran uma manifestação de interesse para aderir ao projeto. Em julho, o prefeito afirmou que as vias com maior potencial para receber as motofaixas ainda seriam mapeadas pela Secretaria de Mobilidade e Planejamento Urbano.A recomendação técnica é que as motofaixas sejam instaladas em vias com pelo menos três faixas de rolamento, como a Avenida Beira-Mar Norte, e posicionadas mais à esquerda, afastando os motociclistas de veículos de grande porte. Questionada neste sábado (25), a prefeitura de Florianópolis informou que aguarda autorização dos órgãos responsáveis e que o projeto segue em análise interna, sem prazo para implantação.No Estado, uma proposta já havia sido aprovada pela Alesc (Assembleia Legislativa de Santa Catarina) em 30 de abril. O Projeto de Lei 165/2023, de autoria do deputado Sergio Guimarães (União), previa a criação de faixas exclusivas para motos nas rodovias estaduais.No entanto, a medida foi barrada pelo governador Jorginho Mello (PL) em 22 de maio. No documento do veto, a Secretaria de Infraestrutura argumentou que as rodovias catarinenses não tem largura suficiente para a implantação e que a medida exigiria intervenções físicas complexas, podendo causar restrições de acesso às margens das estradas e até desapropriações.Em nota, o Governo do Estado afirmou que o projeto vetado sobre a Faixa Azul tinha “vício de origem” e seria inconstitucional por gerar custo sem indicar fonte de financiamento. Segundo o governo, propostas desse tipo só podem avançar se houver previsão orçamentária clara e articulação com diferentes órgãos estaduais, especialmente porque envolvem alterações estruturais nas rodovias.Após o veto do governador Jorginho Mello, o projeto só pode voltar a tramitar se houver nova movimentação na Alesc, com apresentação de uma nova proposta ou derrubada do veto pelos deputados.Por outro lado, especialistas defendem que a Faixa Azul pode salvar vidas quando associada a políticas de segurança viária. O engenheiro da CET destaca que a medida reduz o risco de colisões, mas não resolve o problema sozinha.“A faixa organiza o fluxo, mas o comportamento do motociclista continua sendo o fator mais determinante para evitar acidentes. Em São Paulo, 99% dos motociclistas usam capacete, e incentivamos o uso de botas, protetores de joelho e ombros. Custa caro, mas a vida custa mais”.O projeto de faixa azul segue o princípio do Sistema Seguro, modelo internacional de segurança viária adotado pela ONU e pela União Europeia, que defende a responsabilidade compartilhada entre governo e condutores. A proposta se baseia na Visão Zero, que parte do pressuposto de que nenhuma morte no trânsito é aceitável e que o poder público deve garantir infraestrutura e sinalização adequada para reduzir riscos.Por outro lado, cabe aos condutores respeitar as leis de trânsito, os limites de velocidade e manter uma direção defensiva, reconhecendo que cada escolha no volante pode impactar diretamente na segurança de todos.“O trânsito seguro é uma construção coletiva. A faixa azul é um avanço, mas o respeito mútuo e a consciência do risco são o que realmente salvam vidas”, conclui o especialista.
Comportamento salva vidas enquanto cidade espera por mudanças
Enquanto as medidas estruturais seguem em estudo, quem encara o trânsito tenta se proteger como pode. Especialistas reforçam que atitudes simples — como o uso correto de equipamentos, revisões regulares e pilotagem defensiva — podem evitar tragédias.A adoção de pilotagem defensiva, com manutenção de distância de segurança, é uma estratégia indicada pela Senatran. Outro fator de prevenção de sinistros é o combate à fadiga, ao uso de álcool e à pressa — um comportamento frequentemente observado entre trabalhadores que dependem da moto para sobreviver, como entregadores e motoboys. Checklist de segurança para andar de motocicleta – SBOT/Divulgação/ND Foto 1 de 5 Confira os erros mais comuns de quem anda de motocicleta – SBOT/Divulgação/ND Foto 2 de 5 O erro um é a ultrapassagem arriscada – SBOT/Divulgação/ND Foto 3 de 5 O celular no guidão também coloca vidas em risco no trânsito – SBOT/Divulgação/ND Foto 4 de 5 O erro três é se descuidar com os equipamentos de segurança – SBOT/Divulgação/ND Foto 5 de 5 A redução de mortes depende de um conjunto de ações: fiscalização efetiva, controle de velocidade e campanhas de conscientização voltadas a motoristas. A avaliação é de que infraestrutura, fiscalização e educação devem atuar de forma integrada para que políticas públicas tenham resultados duradouros.Para o ortopedista Diogo Barbosa, nenhuma ação isolada será suficiente enquanto a imprudência seguir presente no trânsito: “Políticas públicas e melhoria das vias ajudam muito. Mas, no fim das contas, é uma questão de comportamento: enquanto as pessoas não mudarem a forma como se relacionam com o trânsito, o número de vítimas vai continuar alto”.Em Florianópolis, atrás de cada estatística, há famílias que convivem com a ausência deixada pelos acidentes. Reinaldo Castro, morto aos 33 anos em setembro, deixou esposa e três filhos.“Ficava feliz esperando ele chegar pelo barulho da moto. Agora ficou só o silêncio”, escreveu a viúva.Para sustentar a família, Reinaldo de Castro trabalhava como mestre de obras ao longo do dia e, à noite, era motoboy – Vídeo: @camartins25/Instagram/Reprodução/ND
Fonte: ndmais
